RPGTober – Dia 2: Simples

KISS, RPG e a arte de não complicar o desnecessário

O segundo dia do RPGTober trouxe um tema que, confesso, me deixou com mais pulgas atrás da orelha do que o de ontem (Dinâmico): o tema Simples.

Por quê? Porque, ironicamente, falar sobre simplicidade é uma das tarefas mais difíceis. Sempre que pensamos em “manter simples”, a mente já tenta complicar: “simples demais não fica raso?”, “como fazer algo simples e, ainda assim, divertido?”, “será que o simples não vai ficar… bobo?”.

E, no caso do RPG, existe uma armadilha extra: o exagero na criatividade. A verdade é dura, mas libertadora: a maioria das campanhas de RPG não morre por falta de ideias. Elas morrem soterradas no excesso.

Sim. Você leu certo. O que mata é excesso. Agora vamos desenvolver melhor isso.

O problema de começar grande demais

Quem nunca viu isso acontecer?

O mestre chega todo animado para a primeira sessão. Ele preparou um bloco de anotações com genealogias de reinos, intrincados diagramas de facções cujas siglas mais parecem partido político, três linhas do tempo paralelas e uns vinte NPCs — cada um com sotaques diferentes, histórias trágicas e planos secretos. Parece incrível, mas, na prática, depois da primeira sessão, os jogadores lembram de dois nomes (com sorte) e o resto desaparece no esquecimento.

E os jogadores também não ficam atrás. Sempre tem aquele que aparece com um personagem cheio de segredos: órfão misterioso, descendente de dragão, protegido de um deus esquecido, com um plano de vingança que só será “ativado”. É bonito no papel, pode até ser uma grande referência ao seu personagem favorito, mas, no jogo, antes da segunda sessão, já virou um peso morto.

E o pior é que muita gente confunde isso com profundidade. “Quero criar um mundo vivo e complexo!”, dizem os mestres. “Meu personagem é cheio de camadas!”, dizem os jogadores. E o que acontece? Em vez de camadas, a criação vira um bloco de concreto. Pesado, duro, mal ajambrado e com um monte de arestas por aparar e furos de roteiro. 

A real é simples (olha o tema aí!): se você começa complicando, a chance de se perder é enorme. E perder-se não é “ficar profundo” — é só frustrar todo mundo e matar a campanha.

O Princípio KISS e o RPG

Aqui entra uma referência histórica que cai como uma luva: o Princípio KISSKeep It Simple, Stupid! (Mantenha Isso Simples, Estúpido!).

A expressão surgiu nos anos 1960, usada pela Marinha dos Estados Unidos e popularizada pelo engenheiro Kelly Johnson, da lendária Skunk Works da Lockheed (os caras que criaram aviões espiões como o SR-71 Blackbird). A ideia era a seguinte: um sistema precisa ser simples o bastante para que qualquer mecânico comum consiga consertá-lo em campo, com ferramentas básicas. Se precisar de algo além disso, o sistema está errado.

E me diga se isso não soa como um conselho direto para RPG.

Quantas campanhas já não foram por água abaixo porque alguém quis “inovar demais”, complicando logo de cara? RPG é um jogo coletivo, e se as ferramentas básicas — ou seja, objetivos claros, ganchos simples e personagens compreensíveis — não estiverem lá, ninguém consegue consertar a bagunça.

No RPG, simplicidade é clareza. Começando com um ponto de partida que todo mundo entende: um vilarejo ameaçado, um monstro atacando a região, ou uma caravana que precisa de escolta. É dar motivações básicas para os personagens: ganhar dinheiro, provar valor ou sair da rotina.

Isso não é preguiça ou algo pouco inspirado. É estratégia, para não perder o fôlego logo nas primeiras sessões.

E, assim como no Princípio KISS, não se trata de chamar ninguém de “estúpido”. A palavra está ali para lembrar que, quanto mais desnecessariamente complicado você faz algo, mais fácil é quebrar. E no RPG, uma campanha quebrada significa jogadores desanimados, encontros frustrados e, muitas vezes, grupos inteiros que simplesmente param de se reunir.

O que significa “simples” na prática

Falar é bonito, mas como aplicar isso na mesa? Vamos separar por papéis: mestres e jogadores.

Para Mestres

  • Objetivos claros: comece com algo que possa ser explicado em uma frase. Exemplo: “Vocês precisam proteger a caravana até a próxima cidade.” Ponto.

  • NPCs funcionais: não são necessários vinte de cara. Três bem definidos (um aliado, um neutro, um inimigo) já dão jogo para várias sessões.

  • Cenários acessíveis: uma vila, uma floresta, ou uma estrada. Deixe a mega masmorra do arquimago doidão, com duzentas salas para depois.

  • Conflitos fáceis de entender: salvar alguém, impedir um desastre, ou derrotar uma criatura.

Para Jogadores

  • Motivação simples: “quero provar meu valor”, “quero juntar dinheiro”, ou “quero sair da roça”. Tudo isso funciona.

  • Passado leve: você não precisa de uma enciclopédia sobre o personagem. Deixe a história se revelar no jogo.

  • Personalidade básica: escolha dois ou três traços (corajoso, arrogante, ou desastrado) e jogue em cima disso.

  • Espaço para crescer: Lembre-se: o personagem não precisa nascer pronto. Ele pode evoluir com a campanha.

Mas e a profundidade?

Aqui vem a pergunta inevitável: se começo simples, não fica raso demais?

Não.

Um único vilarejo pode render uma campanha inteira, se você der espaço para os jogadores interagirem. Quem manda no comércio local? Quem está lucrando com os ataques de monstros? Qual é o segredo daquela família que parece sempre um passo à frente?

Uma motivação básica pode virar um dilema moral poderoso. “Quero juntar dinheiro” parece banal, até que o personagem perceba que está explorando gente pobre demais para enriquecer. “Quero provar meu valor” pode se transformar em uma jornada dolorosa, em que o personagem descobre que a validação que buscava nunca virá dos outros.

O simples é a base. A profundidade virá durante as sessões. 

Exemplos práticos de “simples que funciona”

  • A Caverna Clássica: o grupo precisa explorar uma caverna de onde desaparecem viajantes. Só isso. Dentro, você pode ter monstros, mistérios, até uma entrada para algo maior. Mas o ponto de partida é claro e acessível.

  • A Caravana em Perigo: escoltar comerciantes até outra cidade. O simples abre espaço para encontros inesperados, dilemas de confiança e até conspirações escondidas.

  • O Vilarejo Isolado: algo ameaça uma pequena comunidade. Seja uma criatura, uma maldição, ou uma rivalidade. O simples deixa os jogadores decidirem como lidar.

Cada um desses pontos de partida é simples o bastante para todo mundo entender. Mas todos têm potencial infinito para se tornarem épicos.

O espírito do RPGTober

Esse é o espírito do RPGTober de hoje: simples não significa pouco. Significa consistência.

Significa dar espaço para a mesa respirar, para a história crescer, para os personagens florescerem. Significa não se afogar em notas, diagramas e segredos antes da hora. Significa construir junto, em vez de despejar tudo pronto.

No fim, RPG é sobre diversão compartilhada. Se você se perder em complicações precoces, ninguém vai se divertir. Mas se começar simples, vai ver como a grandiosidade vem sozinha, quase sem esforço.

Então, quando bater aquela vontade de enfeitar demais, respire fundo e lembre do mantra:

Keep It Simple, Stupid.

Mantenha isso simples. O épico vem depois. Ou não.

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