Corram, Seus Tolos! — Jogando RPG com Medo
Existe um veneno silencioso que ronda as mesas de RPG. Ele se esconde nos bastidores da aventura, sussurra nas decisões dos jogadores e contamina a forma como narradores preparam seus desafios. Ele veste a pele da recompensa, do progresso e da justiça. Mas ele é puro vício. Estou falando do hábito de zerar a dungeon.
Sabe do que estou falando. Os jogadores entram num complexo subterrâneo, templo amaldiçoado ou colônia espacial infestada, e imediatamente ativam o modo Diablo III: cada sala é limpa, cada monstro é morto, cada centavo de tesouro é vasculhado. Eles não param até apagar todas as luzes, matar todos os NPCs hostis e transformar o mapa inteiro num parque temático de pilhagem e destruição. E no final? Esperam XP, loot e reconhecimento por terem tratado uma situação complexa como uma planilha de Excel.
Mas e se eu te dissesse que o verdadeiro herói sabe fugir?
Heróis Correm
"Heróis enfrentam o impossível", você diz. E sim, claro. Mas só os tolos enfrentam tudo. Um bom herói sabe reconhecer quando está diante de algo maior, algo que exige mais do que músculos, dados e dano. Às vezes, o que separa o herói do mártir é a covardia inteligente.
Corram, seus tolos! – foi o que Gandalf gritou antes de cair nas sombras junto com o Balrog. Aquilo não era um chefe de fase. Era um aviso do próprio universo de que algumas forças em ação no mundo e no jogo não estão ali para serem vencidas. Estão lá para serem temidas.
A Aula Vem dos Anos 80
Os garotos da Caverna do Dragão sabiam disso. Hank, Eric, Diana e os outros encaravam ameaças que extrapolavam qualquer tabela de encontro aleatório. E duas figuras deixavam isso muito claro: Tiamat, a deusa-dragão de múltiplas cabeças — invencível, colossal, impiedosa —, e o Vingador, que não era um simples vilão, mas um avatar da desgraça, da opressão e do medo.
Os jovens heróis sabiam que nem toda luta podia ser vencida. Em muitos episódios, fugir era a única saída. Usar a inteligência, a união do grupo, os próprios defeitos como força. Não havia vergonha em recuar diante do inatingível — havia sabedoria e instinto de sobrevivência. Se eles tivessem parado para medir força com Tiamat, aquele desenho teria acabado no segundo episódio com uma Total Party Kill. E você sabe disso.
Esses exemplos não só são válidos como são urgentes para uma geração de jogadores que acha que tudo é combável. Que o mundo gira em torno do DPS. Que se um monstro está no caminho, é porque deve ser vencido. E não: às vezes ele está ali para te ensinar o seu devido lugar no grande esquema das coisas.
Como Narrador, Crie o Monstro que Não Deve Ser Morto
Você quer quebrar essa mentalidade na sua mesa? Faça o seguinte: coloque algo que não pode — e nem deve — ser vencido. Um horror antigo. Uma criatura que vive naquele lugar, e que os cultistas e bandidos apenas toleram, como um dragão dormindo numa câmara proibida. Ou um golem que patrulha o último andar, ignorando qualquer pessoa que não o ataque, mas com força suficiente para esmagar um jogador por turno.
Faça com que os jogadores o vejam, o sintam, mas não o enfrentem. Não dê dicas óbvias. Dê sinais sutis. Um mural partido ao meio. Um silêncio repentino nos ecos da dungeon. O rastro de ossos queimados numa sala que nunca aparece no mapa.
Esse oponente está lá não como obstáculo, mas como escolha narrativa. Ele é o lembrete de que aquele mundo é maior que os jogadores. Que há coisas que não se explicam. Que fugir, se esconder, barganhar ou simplesmente aceitar o mistério pode ser mais recompensador do que o XP de um monstro morto.
Recompense a Covardia
Sim. É isso mesmo...
Você quer mudar o comportamento dos seus jogadores? Comece a recompensar a fuga bem-sucedida. Quem consegue escapar de um horror indescritível deve ganhar XP. Quem encontra uma forma criativa de evitar um combate mortal deve ganhar vantagem. Quem convence os outros a não apertar o botão da destruição total... deveria ser o MVP da sessão.
Essa mudança é difícil. É cultural. A maioria das mesas foi criada num paradigma de matar-recompensa-subir de nível. Mas se você joga RPG narrativo — e não rola dados só para brincar com a miniatura no tabuleiro — então está na hora de contar histórias em que a sobrevivência é o prêmio.
O Medo Precisa Existir
Você quer criar sessões memoráveis? Faça os jogadores temerem algo.
O problema da masmorra completamente vencível é que ela mata o suspense. O jogador não teme nada. No máximo, teme não achar um item mágico em meio ao tesouro, ou deixar uma passagem secreta para trás. Mas na pele do seu personagem, talvez exista algo que o personagem teme e se não houver, crie algo queboas rolagens ou uma ficha otimizada não resolve... então aí pode nascer o medo. E com o medo vem a adrenalina. Vem a tensão. Vem aquela cena que será lembranda em outras sessões.
O RPG precisa de monstros invencíveis. De desafios inegociáveis. De entidades que não estão ali para serem derrotadas — estão ali para fazer os personagens se sentirem pequenos. E, justamente por isso, mais humanos.
A Masmorra Não É (Apenas) um Jogo de Tabuleiro
Se você quer um cenário com começo, meio e fim perfeitamente vencíveis, vá jogar War. Um excelente boardgame. Mas RPG é outra coisa.
A sua masmorra é um espaço narrativo, não apenas um tabuleiro. E como toda narrativa, precisa de momentos em que a única escolha possível é fechar a porta, correr, e agradecer aos deuses por estar vivo.
Pare de querer matar tudo. Comece a fugir. Evitar riscos desnecessários, use a inteligência, sem perder a coragem — e aprenda a aceitar que nem tudo gira em torno do seu personagem.
E se você é mestre, pare de recompensar os jogadores só quando eles "limpam a masmorra". Comece a premiá-los quando eles entendem que o mundo não está ali para ser vencido, mas vivido.
Corram, seus tolos!
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