Encontros Não Tão Aleatórios: Uma Crítica ao Grinding Narrativo
A Maldição do Aleatório
Se você já jogou RPG por mais de três sessões, já viveu esta cena: o mestre descreve a estrada, a masmorra, o subterrâneo. Você já está com cabeça pensando no que vai fazer quando vencer o vilão, no mistério que o aguarda, no diálogo com um NPC cheio de segredos. Mas, de repente, ele rola um dado. Você escuta aquele barulho característico dos dados rolando, ele olha uma tabela no livro e fala:
“Hmm… apareceu um grupo de seis goblins.”
. Todos suspiram. O ladino pega um monte de D6 para o ataque furtivo, o guerreiro resmunga “ainda não me curei desde o ultimo combate" e o mago já prepara a magia que ele vai lançar e na dúvida vai de bola de fogo. Pronto: vinte minutos de jogo jogados no lixo, em um combate que não acrescenta nada além de estatísticas.
Estes são os encontros aleatórios em seu pior sentido: interrupções. São como anúncios de YouTube que não dá para pular. Pior ainda: às vezes o mestre acha que está criando um desafio, quando, na verdade, só está testando a paciência dos jogadores. É lógico, não podemos descartar a possibilidade de que os personagens estejam nos ermos e os encontros aleatórios seja utilizados para desgastar recursos dos personagens jogadores e etc.
Agora, não me entenda mal: não sou contra encontros aleatórios. Muito pelo contrário. Sou contra encontros desprovidos de propósito. Aqueles que tratam a história como uma versão medieval do Windows 95, travando a todo momento com pop-ups de monstros irrelevantes.
Encontros aleatórios podem ser incríveis: o tempero que transforma uma simples viagem numa lembrança marcante. Podem revelar segredos, dar destaque a personagens esquecidos, construir o mundo e anunciar o perigo iminente. Mas, para isso, é preciso parar de tratá-los como… bem, aleatórios e para encher linguiça.
O que este texto propõe é mostrar como transformar qualquer “dado de 1d100 na tabela do livro” em um motor narrativo. Afinal, RPG não é Pokémon. Você não joga para acumular XP matando Caterpies infinitos. Você joga para viver uma história. E histórias não são aleatórias.
O Problema do “Monstro por Monstro”
Vamos ser francos: o combate padrão em qualquer RPG é longo. Ele consome tempo, energia e recursos. Não existe combate “sem peso” no sistema. Se você vai colocar um inimigo no caminho do grupo, precisa justificar o porquê.
Encontros aleatórios mal pensados geram três problemas fatais:
Repetição: Enfrentar bandoleiros pela quarta vez na mesma estrada não é um desafio, é uma punição, maçante e tediosa. Dê um rosto, um nome para alguns bandidos, crie um nome para o bando, talvez até mesmo uma recompensa pela captura deles.
Irrelevância: Se o combate não muda nada na trama, ele se torna um filler – o equivalente narrativo a um episódio de Naruto com uma missão para resgatar um gato perdido.
Incoerência: um vampiro aparecendo em plena luz do dia? Uma nereida no deserto, a Km longe d'agua? Muitas vezes, a incoerência surge quando o encontro aleatório é usado sem adaptação ao contexto — sorteado diretamente da tabela, sem considerar clima, ambiente, escala de poder e lógica narrativa.
É como em um videogame mal programado: você está atravessando uma caverna épica, com música dramática, e… aparece um morcego com um único Ponto de Vida. Você o derrota com um único golpe. Nada mudou, exceto sua paciência.
Reescrevendo a Definição
Então, vamos refazer a definição de encontro aleatório:
Um encontro aleatório não precisa ser um obstáculo sem motivo. É uma oportunidade narrativa disfarçada de aleatoriedade.
Um encontro aleatório só vale a pena se:
Revela algo sobre a trama principal.
Cria ou reforça a atmosfera.
Dá oportunidade para um personagem brilhar.
Constrói o mundo de jogo de forma memorável.
Se não faz pelo menos um desses quatro, jogue-o fora. Melhor: nem role a tabela.
O "Foreshadowing" Disfarçado de Goblin
Vamos a um exemplo.
Se o grupo está perseguindo um clérigo de Keenn, você pode colocar goblins genéricos no caminho. Mas por quê? Para gastar recursos? Para atrasar a viagem? Para nada?
Ou você pode fazer melhor.
Esses goblins carregam símbolos sagrados de Keenn. Ou talvez tatuagens recentes, mal cicatrizadas, indicando um culto que está crescendo. Talvez um deles grite antes de morrer: “A guerra nunca acaba!”
Pronto. O combate, que poderia ser irrelevante, agora é foreshadowing. É construção de clima. É uma pista. Os jogadores ficam intrigados: por que goblins aleatórios estão servindo ao deus da guerra? Será que o vilão principal está recrutando seguidores mais rápido do que eles pensavam?
Percebe a diferença? O mesmo encontro, mas com uma camada de narrativa que transforma estatística em história.
O Herói Esquecido
Outra função vital dos encontros não tão aleatórios é lembrar que todo personagem importa.
Já aconteceu na sua mesa: um jogador escolhe um inimigo específico, um talento obscuro ou uma motivação única… e o mestre simplesmente nunca coloca nada disso em jogo. O bárbaro que odeia construtos jamais enfrenta construtos. O clérigo inimigo de mortos-vivos só luta contra bandidos. O ladino que é obcecado por guildas rivais nunca encontra outro ladrão.
Encontros aleatórios são a desculpa perfeita para corrigir isso.
Você não tinha planejado construtos? Tudo bem. No meio da estrada, um golem fora de controle aparece. Ele não tem nada a ver com a trama principal, mas tem tudo a ver com o personagem. E, de repente, aquele jogador sente que o mundo o reconhece.
Essa é a magia: encontros como ferramentas de engajamento individual.
A Geografia dos Monstros
Outra regra de ouro: o mundo precisa fazer sentido.
Se o grupo está a um dia da cidade de onde eles partiram, faz sentido encontrar bandoleiros, goblins, trogloditas. Criaturas de nível heroico. É improvável topar com um dragão-rei, um gigante ou um lich épico.
Agora, se estão viajando em um barco mágico, singrando as galáxias e o espaço entre os mundos e planos? Aí sim, encontrar uma criatura épica deixa de ser absurdo.
A regra é simples: quanto mais longe da civilização, mais bizarros e poderosos os encontros. Quanto mais perto de estradas movimentadas, mais "mundanos" eles devem ser. Isso cria coerência e dá aos jogadores a sensação de que o mundo tem uma ecologia, que monstros não estão jogados em um mapa como adesivos.
Claro, sempre há espaço para exceções — e é justamente aí que você cria impacto. Um dragão em pleno mercado de Valkaria? Isso não é incoerente, é o início de uma crônica. Mas a exceção precisa ser narrada como exceção, não como regra.
O Lado Videogame
Vamos falar de videogames, porque, sim, RPG de mesa e videogame se alimentam mutuamente. Entretanto você precisa entender a diferença fundamental.
Nos games, encontros aleatórios existem para acumular grinding. São parte do loop de gameplay. Em Final Fantasy, você enfrenta milhares de monstros iguais porque precisa de XP, loot e dinheiro.
No RPG de mesa, não existe grinding. Não deveria existir, pelo menos. Você não joga RPG para repetir ações mecânicas até subir de nível. Você joga para construir uma narrativa coletiva.
Então, copiar a lógica do videogame para a mesa é um erro. Encontros aleatórios em RPG precisam ter função narrativa, não função de farm.
Se você quiser emular a sensação de videogame, faça com propósito:
Use encontros para transmitir a dureza de uma jornada (como em Dark Souls).
Para mostrar que o mundo está vivo e cheio de perigos (como em The Witcher).
Para dar contraste entre batalhas pequenas e chefes devastadores.
Mas nunca para encher linguiça.
Como Planejar o “Aleatório”
Agora vem a parte prática. Você não precisa abandonar as tabelas de encontros aleatórios. Mas precisa hackeá-las e aprimorá-las.
Dicas para planejar encontros não tão aleatórios:
Pense na função antes do dado. Esse encontro serve para quê? Revelar trama, construir mundo, dar espaço a um personagem, criar clima?
Amarre ao contexto. Quem controla essa região? Quais rumores circulam? Quais vilões podem ter influência aqui?
Use símbolos e pistas. Armaduras, tatuagens, cartas, estandartes. Pequenos elementos que conectam inimigos genéricos a algo maior.
Equilibre a frequência. Dois encontros memoráveis são melhores que dez encontros esquecíveis.
Prepare exceções. Tenha na manga uma aparição absurda, um monstro desproporcional, mas com contexto narrativo. Isso gera impacto.
Exemplos Prontos
Para você não dizer que estou só filosofando, aqui vão alguns exemplos de encontros não tão aleatórios.
Estrada para Valkaria
Bandoleiros de aluguel: Atacam o grupo na calada da noite. Quando derrotados, vocês podem verificar seus pertences e ver que carregam contratos com o selo de uma casa real.
Tropa de goblins: Cada um carrega um símbolo de Ragnar queimado na pele.
Gnolls famintos: Um deles implora por ajuda para salvar sua alcateia envenenada.
Fronteira Selvagem
Golem errante: Sem controle, ecoa frases desconexas de seu criador morto.
Cultistas em êxtase: No meio do nada, realizando um ritual que revela o nome do vilão. Um excelente foreshadowing
Hidra-bruxa do pântano: Cada cabeça recita uma profecia diferente. Todas são verdades, nenhuma é verdade. O paradoxo pode enlouquecer os personagens
Encontros Épicos
Dragão entediado: Aparece não para lutar, mas para cobrar pedágio de histórias.
Titã adormecido: Os jogadores o encontram sem querer e precisam decidir se o acordam.
Demônio disfarçado: Passa-se por viajante comum, mas oferece um pacto irresistível.
O Impacto na Mesa
Quando você começa a usar encontros não tão aleatórios, a mesa muda. Jogadores param de revirar os olhos quando você diz “vocês encontram…”. Eles começam a ficar ansiosos: “o que vai acontecer agora?”.
Cada encontro se torna um show a parte. Um interlúdio da campanha. E mais: os jogadores começam a sentir que o mundo é coerente, vivo e cheio de surpresas.
Não é sobre lutar contra goblins. É sobre descobrir que esses goblins são peças de algo maior.
Conclusão: Azar no Dado, Sorte na Narrativa
Encontros aleatórios são um clássico do RPG. Mas como tudo no hobby, eles só brilham quando usados com inteligência e adaptação. Um bom mestre não joga dados para matar o tempo e fazer o grupo ganhar XP. Um bom mestre transforma cada número em uma oportunidade de narrativa.
Então, da próxima vez que você rolar e sair “um bando de goblins”, respire fundo e pergunte:
O que esses goblins realmente significam?
Porque, no fim das contas, não existem encontros aleatórios. Existem apenas histórias esperando para serem contadas.
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